Estava desejosa que este dia chegasse, o dia em que termino este caderno. Faltam apenas quatro páginas, estas serão escritas hoje e agora. Depois deste, já outro me espera, um caderno igual, mas de cor diferente, com as mesmas páginas e o mesmo propósito, desocupar a minha mente do que sinto e senti-lo.
Quem diria que um dia, eu, tal como os meus textos, andaríamos perdidos entre uma parafernália de cadernos inacabados. Cadernos onde cem páginas mirraram para cinquenta, pois cada vez que decidia escrever, de lés a lés, obrigava-me a recomeçar num caderno em branco, renunciando tudo o que tinha escrito até à data, tentando esquecer o que senti e o que fui.
Faz parte de nós, o sonho de um novo começo, de uma nova vida, conforta-nos a ideia de que subitamente podemos escrever uma nova história quando, na verdade, tudo o que podemos é escrever um novo capítulo. Esquecer é mera ilusão, é impossível esquecer tudo o que ficou para trás, a nossa memória é prova disso e a tentativa de o fazer, é uma guerra perdida antes sequer do seu começo.
Por vezes pergunto-me o que me terá levado a gostar tanto de escrever, ou quem.
Recordo-me de ser miúda e, se não me falha a memória, estava com o meu pai, lembro-me de contemplar na montra de uma papelaria, um pequeno diário em forma de coração e deste me deslumbrar. Sempre quis manter um diário, contudo nunca consegui. Acabei por tê-lo, devo ter escrito uma ou outra coisa, arrancado uma ou outra página e acabei por perde-lo juntamente com a chave e cadeado. Que bela analogia, reparo agora.
Outra memória que surge é a de estar em casa da minha mãe e, para além de usurpar as suas roupas e sapatos, acabei por encontrar os seus diários. A medo de ser apanhada em flagrante, apressei-me e corri-os com os olhos. Cada vez que lá ia tentava sempre ler um pouco mais. Curiosidade com toda a certeza, mas arrisco-me também a dizer que talvez a quisesse compreender um pouco melhor.
De vários que ela tinha, recordo-me particularmente de um, era cor de rosa e na capa via-se a centenária
Pierrette, desolada e melancólica como sempre, sofrendo a doença de um amor não correspondido.
Não me recordo do que li, recordo-me apenas do que senti. Uma mescla de confusão, tristeza e esperança. Gostava de o poder reler, agora que compreendo o que na altura era incompreensível, pelo menos na cabeça de uma criança. Talvez lho peça...
Outra das coisas que também me marcou foi a sua caligrafia. De todas as que vi, nunca nenhuma me pareceu mais bela que a da minha mãe, tanto que a repliquei tantas vezes que esta acabou por se entranhar na minha e, embora não seja completamente igual, chega a ser assustadoramente semelhante. Onde chega a criatividade de uma criança para se encontrar mais perto dos pais, é de facto impressionante.
Escrevo estas páginas com alguma comoção, não por serem as últimas, mas por conseguir o impensável, mais uma vitória para a pequena Leandra.
Tudo o que escrevi, para além de ter nutrido a criança faminta de amor que vive em mim, também ajudou a compreender melhor quem está do outro lado. Todos nós somos feitos do mesmo, da mesma matéria que tudo aquilo que nos rodeia. Todos conhecemos os mesmos conceitos e as mesmas emoções, o que nos difere é apenas a perceção pessoal de quem somos e do mundo, e quantos mundos existirão neste? Quantas personas seremos nós aos olhos de todo o observador?
O ser humano fascina-me! Há em mim uma compulsão para tentar compreender o que se esconde para além da máscara, de que é feito o núcleo de cada um, do que nos torna tanto diferentes quanto iguais e uma necessidade atroz de saber o que nos faz ser quem somos. Existe também um desejo enorme de ser compreendida em conflito com a capacidade de confiar, não serei a única certamente. Infelizmente, neste mundo, sentir é sinônimo de fraqueza, vulnerabilidade é um risco que poucos ousam e o pertencer e ser são eternos inimigos.
Mais um parágrafo e reparo agora que a última página se encontra a umas meras linhas de distância. A última de um de muitos capítulos que estão por vir.
Eu sei que para alguns, um caderno nada tem de entusiasmante, contudo, para mim vai ser sempre muito mais que isso. Procurei e continuarei a procurar compreender-me um pouco melhor a cada dia que passa, comprometi-me a encontrar-me onde me perdi e a deixar-me ser quem realmente sou. Aceitei que nem sempre escreveria algo fácil de se ler e mesmo assim escrevi-o, sem medo.
Cada página será sempre um pedaço de mim, será sempre uma memória congelada no tempo, no meu e no nosso mundo. Que bela viagem!