janeiro 29, 2024

A última página

 Estava desejosa que este dia chegasse, o dia em que termino este caderno. Faltam apenas quatro páginas, estas serão escritas hoje e agora. Depois deste, já outro me espera, um caderno igual, mas de cor diferente, com as mesmas páginas e o mesmo propósito, desocupar a minha mente do que sinto e senti-lo. 
 
 Quem diria que um dia, eu, tal como os meus textos, andaríamos perdidos entre uma parafernália de cadernos inacabados. Cadernos onde cem páginas mirraram para cinquenta, pois cada vez que decidia escrever, de lés a lés, obrigava-me a recomeçar num caderno em branco, renunciando tudo o que tinha escrito até à data, tentando esquecer o que senti e o que fui. 

 Faz parte de nós, o sonho de um novo começo, de uma nova vida, conforta-nos a ideia de que subitamente podemos escrever uma nova história quando, na verdade, tudo o que podemos é escrever um novo capítulo. Esquecer é mera ilusão, é impossível esquecer tudo o que ficou para trás, a nossa memória é prova disso e a tentativa de o fazer, é uma guerra perdida antes sequer do seu começo.
 
 Por vezes pergunto-me o que me terá levado a gostar tanto de escrever, ou quem. 
 Recordo-me de ser miúda e, se não me falha a memória, estava com o meu pai, lembro-me de contemplar na montra de uma papelaria, um pequeno diário em forma de coração e deste me deslumbrar. Sempre quis manter um diário, contudo nunca consegui. Acabei por tê-lo, devo ter escrito uma ou outra coisa, arrancado uma ou outra página e acabei por perde-lo juntamente com a chave e cadeado. Que bela analogia, reparo agora. 
 
 Outra memória que surge é a de estar em casa da minha mãe e, para além de usurpar as suas roupas e sapatos, acabei por encontrar os seus diários. A medo de ser apanhada em flagrante, apressei-me e corri-os com os olhos. Cada vez que lá ia tentava sempre ler um pouco mais. Curiosidade com toda a certeza, mas arrisco-me também a dizer que talvez a quisesse compreender um pouco melhor. 
 De vários que ela tinha, recordo-me particularmente de um, era cor de rosa e na capa via-se a centenária
Pierrette, desolada e melancólica como sempre, sofrendo a doença de um amor não correspondido.

 Não me recordo do que li, recordo-me apenas do que senti. Uma mescla de confusão, tristeza e esperança. Gostava de o poder reler, agora que compreendo o que na altura era incompreensível, pelo menos na cabeça de uma criança. Talvez lho peça...
 
 Outra das coisas que também me marcou foi a sua caligrafia. De todas as que vi, nunca nenhuma me pareceu mais bela que a da minha mãe, tanto que a repliquei tantas vezes que esta acabou por se entranhar na minha e, embora não seja completamente igual, chega a ser assustadoramente semelhante. Onde chega a criatividade de uma criança para se encontrar mais perto dos pais, é de facto impressionante. 
 
 Escrevo estas páginas com alguma comoção, não por serem as últimas, mas por conseguir o impensável, mais uma vitória para a pequena Leandra. 
 Tudo o que escrevi, para além de ter nutrido a criança faminta de amor que vive em mim, também ajudou a compreender melhor quem está do outro lado. Todos nós somos feitos do mesmo, da mesma matéria que tudo aquilo que nos rodeia. Todos conhecemos os mesmos conceitos e as mesmas emoções, o que nos difere é apenas a perceção pessoal de quem somos e do mundo, e quantos mundos existirão neste? Quantas personas seremos nós aos olhos de todo o observador? 
 
 O ser humano fascina-me! Há em mim uma compulsão para tentar compreender o que se esconde para além da máscara, de que é feito o núcleo de cada um, do que nos torna tanto diferentes quanto iguais e uma necessidade atroz de saber o que nos faz ser quem somos. Existe também um desejo enorme de ser compreendida em conflito com a capacidade de confiar, não serei a única certamente. Infelizmente, neste mundo, sentir é sinônimo de fraqueza, vulnerabilidade é um risco que poucos ousam e o pertencer e ser são eternos inimigos. 
 
 Mais um parágrafo e reparo agora que a última página se encontra a umas meras linhas de distância. A última de um de muitos capítulos que estão por vir. 
 Eu sei que para alguns, um caderno nada tem de entusiasmante, contudo, para mim vai ser sempre muito mais que isso. Procurei e continuarei a procurar compreender-me um pouco melhor a cada dia que passa, comprometi-me a encontrar-me onde me perdi e a deixar-me ser quem realmente sou. Aceitei que nem sempre escreveria algo fácil de se ler e mesmo assim escrevi-o, sem medo. 

 Cada página será sempre um pedaço de mim, será sempre uma memória congelada no tempo, no meu e no nosso mundo. Que bela viagem!

janeiro 27, 2024

Faça chuva ou faça sol


 Eram oito horas da manhã de quinta-feira e o despertador mais uma vez me invadia o sonho. Desta vez não fiquei particularmente chateada, ainda que não tivesse acordado por mim, acordei especialmente bem disposta. Apressei-me a abrir as persianas e a deixar o sol entrar, espreguicei-me no parapeito da janela tal e qual um gato e fiquei a contemplar o limoeiro que tenho no quintal por alguns minutos.

 "Café! Preciso de café!" - Pensei. E lá fui eu fazer o café de antigamente, aquele café de cafeteira cujo aroma se espalha por toda a casa. Todos os dias o faço e todos os dias sou levada a uma memória da minha avó, ali, sentada no sofá, molhando o seu papo seco na caneca e comendo-o deleitosamente. É a este conforto que me sabe o meu primeiro café da manhã.

 Quinta-feira é também dia de terapia, duas por mês no horário da manhã, por isso, após beber o meu café tranquilamente, comecei-me a despachar para sair de casa. Uma hora depois já me encontrava no escritório do meu terapeuta, pronta para abordar as conclusões a que tinha chegado durante a semana. Apesar do tema abordado ter sido maioritariamente tristeza, esta sessão foi de longe muito mais leve que a anterior e não pesou na minha boa disposição.

 Umas boas horas do dia já haviam passado e após almoçar segui para casa. Ia no autocarro e numa das paragens deparei-me com uma imagem, uma floresta, livre de ‘slogans’ e promessas de uma sociedade consumista, estranho. As árvores eram altas e o sol atravessava os seus grandes troncos, quebrando-se em vários fechos de luz e sombra. Não me pareceu acaso, ou pelo menos assim o quis entender. 

 Não é isso que somos? Um todo que se vai quebrando em luz, onde o único propósito da sombra é apenas manter o equilíbrio necessário para que esta não encandeie?

 Uma sombra que metaforicamente representa a tristeza de que falava com o meu terapeuta, da qual todos fogem e ninguém quer sentir. A tristeza deve ser sempre saciada, sem tristeza não há artista, não há criação, não há beleza. Há apenas uma fachada, uma parte de alguma coisa.

 Como uma criança que se julga invisível, esta insiste e resiste, gritando cada vez mais alto. E se a ouvirmos? E se não fugirmos e a abandonarmos? Há que dar voz ao que dói, há que o sentir e deixá-lo ser. Uma dor bonita de se viver, de perceção e aceitação, com todos os seus ciclos, uma dor que se transforma e nos transforma, é tudo e apenas isso.
 
 Como seria viver sem esta parte de mim? Viver num constante estado de felicidade parece-me algo quimérico. Por vezes pergunto-me se existirá alguém que viva assim e logo me apresso a julgar - Uma triste alma, vivendo num constante estado de negação, ainda não se encontrou! - Acredito que muitos se percam assim, num mundo onde o que se tem, vale mais do que se é, vivendo compulsivamente de descargas momentâneas de endorfinas e dopamina para que esteja sempre tudo bem, para que a felicidade nunca os abandone. Contudo, nada dou como certo, é também possível que sejam realmente felizes, e ainda bem se assim for.

 A mim, o que me mantém é saber que tudo são momentos, que felicidade vai e felicidade vem, basta-me desfrutar da sua companhia enquanto esta se aporta na minha vida. Um simples pôr do sol, uma trilha na natureza, a areia quente da praia onde enterro os pés ou até mesmo a fria, numa noite de lua cheia onde tudo o que se ouve é o rebentar das ondas à beira-mar, o contemplar do mais belo que vive neste mundo. 
 O silêncio confortável com quem nos é querido, um pequeno gesto de apreço e um abraço onde encontramos conforto. É assim que me drogo e é disso que me alimento, sem nunca desprezar os dias de chuva e as noites frias, também esses são essenciais.

janeiro 23, 2024

Sobre propósito e autenticidade

 

  

 Desde que embarquei nesta viagem de consciencialização do Ser até ao dia de hoje, o meu problema tem sido esta luta constante pelo saber quem sou e se tenho necessariamente de me encaixar no mundo. Isto levou-me a perder-me na minha cabeça e a questionar a minha autenticidade, chegando mesmo, em determinadas situações, a não conseguir reagir socialmente, o que acabou por me levar a isolar-me de tudo e todos, até dos que não me são estranhos.

 O que sou, o que quero, o que é suposto e quem quero ou não quero ser, resultou num nevoeiro existencial que me trouxe, e por vezes ainda traz, alguma angústia. 
Contudo, nesta busca pessoal dei por mim a ler Nietzsche e a identificar-me cada vez mais com as suas filosofias. Para alguns, controverso e radical, para mim, este nome tornou-se sinónimo de consciência.

 Na minha interpretação de algumas das suas filosofias consegui encontrar alguma razão e consolo. Não me senti assim tão incompreendida quanto julgava ser. 

 Nietzsche afirmava que a nossa busca incessante de propósito numa sociedade cada vez mais secular, nos levaria a cair no abismo do niilismo. Ora, esta doutrina filosófica é sempre associada a algo negativos, e sim, até eu concordo com esta assunção dado que o niilismo nega a nossa própria existência, a nossa vida, é a ausência de sentido e propósito. No entanto, Nietzsche aceitava-o como parte de um todo, desconstrui-o, estudou-o e viu no problema também uma solução. Para Nietzsche o niilismo faz parte do processo de nos tornarmos cada vez mais quem podemos ser, ele acreditava que face à morte de Deus, face à rejeição dos valores tradicionais este abismo seria uma consequência inevitável. A meu ver, é também um mal necessário, não considero de forma alguma que Nietzsche seja niilista na sua essência.

 Para este pensador, seria necessário abolir todas as crenças tradicionais baseadas em valores impostos pela sociedade e religião e criar novos valores pessoais. Tornando assim esta patologia, como ele o entendia, numa ponte de passagem em direção a um Ser mais autêntico e capaz, um Übermensch, o modelo ideal a alcançar.

 "Deus está morto!" - Diz Nietzsche num dos seus livros. É com isto que mais me debato, pois apesar de não crer num Deus associado a uma religião ou sequer no seu conceito de um ser supremo omnipresente e onibenevolente, acredito que exista algo que transcenda este mundo materialista. Não necessariamente a existência de uma vida para além da morte, mas em algo como energia na sua mais pura forma, energia que somos, da qual surgimos e para a qual voltamos, se com consciência ou não, não sei, apenas sei que aqui tenho uma única vida, esta que vivo. Por isso não concordo inteiramente com esta ideia de matar por completo uma divindade, seja ela qual for, apenas penso que esta não deva ser prioridade nem tão pouco traçar um precedente para as crenças que adquirimos ao longo desta viagem.

 Eu vejo o homem como o suprassumo do mundo físico e admiro toda a nossa potencialidade. Acredito que é aqui que nos transcendemos e a nossa vitalidade tem o poder de alterar as nossas circunstâncias. No entanto, a nossa falta de consciência é a nossa maior inimiga.

 Nascer, viver e crescer numa sociedade onde tudo já está predefinido não é propriamente fácil, mais ainda quando começamos a questionar tudo aquilo que nos é imposto e percebemos que as nossas escolhas são meras ilusões. Podemos escolher, mas as alternativas já nos são dadas de antemão e devemos sempre estar em concordância com a norma do que é socialmente aceitável. E volto a questionar-me - Quem sou e onde me encaixo?!

 É a aqui que me apaixono por Nietzsche. Ele acreditava que temos tendência a procurar e encontrar propósito em movimentos coletivos, pois temos esta necessidade, como seres sociais que somos, de querer fazer parte. Isto leva à alienação do nosso próprio propósito e dificulta a criação de novos valores, boicotando assim a nossa autenticidade. Concordo veementemente com Nietzsche. Consigo perceber que aos olhos de muitos, esta visão possa parecer egoísta, mas não é essa a minha perceção. 
O ato consciente de nos isolarmos em prole da nossa evolução pessoal, não me parece nada mais do que sensatez, até porque caso contrário, apresentamos aos demais uma ínfima fração de quem somos e mesmo assim, esta surge mascarada por medos inconscientes e a receio de possíveis juízos de valor inerentes a esta sociedade doente. 

 Em "Assim falou Zaratustra" de Nietzsche, o filósofo no primeiríssimo capítulo apresenta-nos um texto que aborda três metamorfoses do espírito necessárias para o alcance da liberdade. Estas três fases, o camelo, o leão e a criança, fazem parte de um processo evolutivo onde o nosso espírito confronta todos os valores milenares criados até então. Estes valores encontram-se simbolicamente representados nas escamas de um grande dragão ao qual Nietzsche dá o nome de "Tu deves".

 Na sua primeira forma, o espírito, enquanto camelo, está destinado a carregar todo o peso que deve ser carregado. Este segue todos os valores que lhe foram impostos sem nunca contestar, dando-lhe assim uma falsa sensação de liberdade e felicidade. O camelo é subserviente, submisso e conformista, anseia carregar todo o peso que as suas bossas conseguem suportar e orgulha-se humildemente da sua força. 

 A transformação seguinte dá-se quando o camelo se encontra no meio do deserto. Sobrecarregado e tomando consciência da sua solidão, este começa-se a questionar e a questionar a sua visão do mundo, ocorrendo assim a sua segunda metamorfose, o leão.

 Ainda no deserto, surge o grande dragão. O leão, tem agora uma nova voz, um forte rugido que nega todos os valores milenares que lhe foram impostos. Um rugido contra todas as suas limitações. O leão rebela-se e aprende a dizer "Não!", tornando esta forma do espírito libertária na sua essência e, acabando por destruir tudo o que representa o dragão.
Embora destruídos todos os valores tradicionais, o leão ainda não tem a capacidade de criar novos valores. Contudo, a sua natureza reativa e vontade própria acabam por dar origem à liberdade para essa mesma criação. É neste momento que se dá a terceira transformação.

 Por fim, a criança. E o que representa esta criança? Representa uma página em branco, representa inocência e capacidade de esquecer. Genuinidade, liberdade e um "Sim" sacro essencial para a criação de novos valores, de um novo mundo, um mundo incorruptível por influências externas.

 Acredito, assim como Nietzsche, que esta seria a última metamorfose que necessitaríamos para podermos então exercer com toda a plenitude o meu conceito favorito - Amor Fati! 
No entanto, perceciono este conceito de uma forma diferente de Nietzsche. Este, achava necessário matar Deus para ser possível alcançar este estado de total aceitação pelo que foi, é e será. Discordo. O meu conceito de Deus não exerce qualquer tipo de poder na minha vida. É apenas um reagente às minhas escolhas e responde apenas à minha energia, por isso, não considero que para haver um renascimento do Ser, tenhamos necessariamente de matar a nossa divindade, a menos que esta divindade seja algo em que cremos mais do que em nós, aí já vejo essa necessidade.

 Amar o destino livre de expectativas, abraçar tudo aquilo que se atravessa no nosso caminho sem pudor. Um destino que não está traçado, mas sim que acontece. Quão bela seria a vida se fossemos total detentores dessa capacidade?! Será que viveríamos uma vida mais dócil?! Eu acredito que sim e penso que o caminho seja por aí...
Não procuro tornar-me um Übermensch, até porque este conceito filosófico de Nietzsche implica a transformação do ser humano num "Além-Homem", superior aos demais. Acredito na autossuperação contínua, no abandono da moral de rebanho e na criação de um novo mundo livre dos limites convencionais, mas a ideia de que o culminar de tudo isto possa resultar num ser quase perfeito, não. Vejo a perfeição como um conceito abstrato e fastidioso e não é esse o meu objetivo.

 A mim interessa-me o processo, Ser até deixar de o ser, até que a minha consciência se vá com o último dia da minha vida. Se haverá um amanhã depois do último dia, não sei. Parece-me absurdo e presunçoso crer em qualquer uma das possibilidades.  

 "What, if some day or night a demon were to steal after you into your loneliest loneliness and say to you: 'This life as you now live it and have lived it, you will have to live once more and innumerable times more; and there will be nothing new in it, but every pain and every joy and every thought and sigh and everything unutterably small or great in your life will have to return to you, all in the same succession and sequence—even this spider and this moonlight between the trees, and even this moment and I myself. The eternal hourglass of existence is turned upside down again and again, and you with it, speck of dust!"

-Nietzsche, Gaia Ciência

setembro 19, 2023

Solidão vs Solitude

Em tempos isolei-me por me sentir só, incompreendida e abandonada de qualquer réstia de semelhança ao outro, a solidão inevitavelmente surgiu.
 O ato de inconscientemente nos isolarmos porque já nos sentimos sós, por falta de amor-próprio.
 Lembro-me bem dessa fase da minha vida, foi o ano em que completei o meu quarto de século. Um ano atribulado, um ano em que era impensável ouvir-me ou estar na minha presença. 
 Na altura vivia num quadrado mínimo em Campo de Ourique e o espaço era demasiado pequeno para mim e para os meus tormentos na altura. Os pensamentos destrutivos e de autocomiseração cercavam-me e não tinha para onde fugir, por isso mal parava em casa.
 Trabalhava o máximo que conseguia e quando não estava a trabalhar, bem, quando não estava a trabalhar, estava a beber. Bebia até estar suficientemente intoxicada para poder chegar a casa e enterrar os meus problemas na almofada, e assim o fiz durante vários meses da minha vida...
 Não conseguia viver comigo, com quem era, e mais que tudo, deixava-me afogar no pensamento de que aquilo era tudo o que alguma vez conseguiria ser. Focava-me naquela rotina miserável e dela alimentava-me, jamais me queria ouvir pensar e assim, fui adiando a minha vida.
 Gosto de chamar a estas fases menos boas da vida fases de luto. O choque inicial, a fuga no sentido oposto ao que nos é conveniente, a autossabotagem que surge das nossas inseguranças e tristeza, a solidão e o acordar para a vida. 
 Percebi que criava outro problema e decidi dar-me uma oportunidade, decidi ouvir aquilo que tinha para me dizer. A partir daí tem sido uma aprendizagem constante. A idade foi somando um e outro ano, amizades momentâneas foram desmascaradas, uns tantos amigos passaram a dois ou três e a solidão deu lugar à solitude.
 E como eu gosto da minha solitude, como gosto de estar comigo...
 É engraçado como a vida nos mostra que por vezes o nosso foco está em meras futilidades, como nos faz ver que conexões são reais e quais serviram apenas o seu propósito. Quando nos consciencializamos desta dinâmica concluímos que somos felizes com aquilo que temos, com quem permaneceu e essencialmente connosco.
 A solitude é um ato de isolamento diferente, é quando nos afastamos não para estarmos sós, mas para estarmos na nossa companhia. Faz-nos debruçar sobre quem somos, sobre o nosso propósito e permite-nos ter não mais que amor e apreço por nós.
 Permite-nos escolher a nossa realidade longe de medos e inseguranças, é o ato consciente e egoístico de nos priorizarmos sem pedidos de desculpa.
 Não troco os meus momentos por nada deste mundo, o tempo que passo a desenhar ou a escrever, os picos de euforia em que só me apetece pular e dançar, os momentos mais serenos de reflexão e aqueles em que não me apetece fazer absolutamente nada! 
 Hoje consigo perceber que a minha energia é demasiado preciosa para ter de me encaixar naquilo que é o padrão social, muito menos nos dias que correm. Agora percebo o verdadeiro significado do provérbio "Só faz falta quem cá está". 
 Permiti-me despir o velho e vestir o novo, a solidão acabou por dar origem a uma inesperada crisálida de onde nasceu esta solitude que tanto amo.
 E não é essa a metamorfose mais bonita de se viver?!

agosto 22, 2023

E quando eu me for...

  E quando eu me for não me guardem saudade… Não se recordem de mim. Para mim um começo e sem dúvida, para vós, um fim. 

 Queimem as minhas roupas usadas e corpo imundo deste mundo. Deixem a minha alma correr nua por entre corpos celestes, livre de preconceitos e orações. Deixem-me ser um todo, deixem-me ser por completo. Sentir o que finalmente sou. 

 Longe de um corpo e longe de olhares, do que outrora fingi ser… Ingenuamente feliz! Sem relógio para ditar para onde vou e livre das correntes deste mundo físico e superficial. Sem medo, sem uma história cíclica que detém o dever de ser cumprida, uma e outra vez.

 A vida é uma dádiva, é um facto! No meio de quatrocentos triliões de probabilidades, tivemos a ínfima sorte de ter nascido… Mas uma vida em direção à morte não me parece uma vida digna. Crescer com a ideia que não há tempo a perder, porque este urge e é escasso, deturpando assim o sentido da vida.

 “O que queres ser quando fores grande?” — Com certeza, é uma pergunta que te recordas. Para mim, esta questão é, não mais que uma limitação. Uma questão que inconscientemente nos obriga a interiorizar a ideia de que só podemos ser uma única coisa até ao nosso último suspiro. Um “tens de ser” eminente quando na verdade Ser, é apenas um conceito que ainda te é desconhecido.

 No meio de teorias e crenças incutidas, procuramos propósito… Damos pelos anos passar e vemos este invólucro deteriorar-se, o nosso prazo de validade sempre alerta. E eu recuso-me a crer que só existo neste mundo. 

 Por isso digo-vos… 

 Quando eu me for, quero que saibam que o meu tempo de gestação chegou ao fim… Celebrem o meu nascimento, a minha existência enquanto ser imortal e omnipresente, um ser constante e sem idade.

 E deixem-me apenas Ser… 


  Disclosure: 

 Mais do que morte, este texto é essencialmente sobre vida, sobre a capacidade de vermos quem somos e não pelos olhos dos outros. Sobre Ser, como deve ser!

 Dei por mim numa tarde de Sábado debruçando-me sobre uma questão - Porque precisarei eu de me sentir validada? 
Perdi-me no meu pensamento em busca de uma resposta mas apenas mais dúvidas surgiram...

 Levamos uma vida inteira montando um personagem que possa corresponder às expectativas dos outros, sejam eles família, amigos e nos dias que correm, desconhecidos. Devoramos maneirismos e consumimos muito quem nos rodeia, necessitamos fazer parte e sentirmo-nos compreendidos, acreditando assim, que de alguma forma isto nos aproxima.

 Chega um momento em que a máquina deixa de responder. Já não quer estar do outro lado do espelho… Percebemos que cada vez menos encontramos conterrâneos e não nos importamos de estar num estado de constante vulnerabilidade, pois estamo-nos a descobrir longe dos olhos do mundo.

 E é disto que o texto fala, de uma vontade de nascer fora deste mundo físico, num mundo livre. 
Num mundo livre da tua opinião. 

 Por vezes é necessário cegar os outros para nos podermos ver e por fim, Ser.

A última página

 Estava desejosa que este dia chegasse, o dia em que termino este caderno. Faltam apenas quatro páginas, estas serão escritas ho...